Com gritos de “Fora Lira”, movimentos em todo país entoaram contra retrocesso escandaloso. Vítimas de estupro podem ter penas maiores que abusadores, e país pode viver epidemia de gravidez infantil. Quem falam são as próprias vítimas.
“Eu fui vítima. Não criminosa”, estampava em letras maiúsculas o cartaz carregado pela assistente fiscal tributária, Nicole Elias, de 23 anos. A jovem esteve ao lado de centenas de mulheres na noite desta quinta-feira (13/6), na Av. Paulista, região central da cidade de São Paulo, em protesto contra o Projeto de Lei 1904/24, intitulado de PL da Gravidez Infantil, que equipara o aborto a crime de homicídio. O ato também foi marcado por fortes críticas ao presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL), que colocou em votação relâmpago e aprovou a urgência do projeto.
O texto de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), da bancada evangélica, proíbe a interrupção da gravidez acima de 22 semanas de gestação, inclusive em caso de estupro, e prevê pena de 6 a 20 anos de prisão para a pessoa que passar pelo procedimento. Se aprovado, a pena para vítimas de estupro que realizam o aborto seria maior que a pena prevista atualmente para quem comete o abuso, que varia entre 6 a 10 anos, quando a vítima é adulta.
Vítima de violência sexual por mais de cinco vezes dentro da própria casa, Nicole disse à Ponte que não imaginava que poderia sentir uma dor maior do que ser abusada. “Por algum milagre, eu não cheguei a gerar uma consequência dos atos de outra pessoa”, afirmou a jovem. “Como que, eu sentia dor, eu passei o trauma, eu vivenciei aquilo, mas uma outra pessoa que não estava na minha pele disse para mim o que eu tenho que fazer e o que eu tenho que aguentar? Não é uma questão religiosa, é uma questão humana”, reiterou.
De acordo com especialistas em questão de gênero, o projeto de lei afetaria principalmente crianças vítimas de violência sexual. A identificação da gravidez de crianças após estupro é mais demorada, o que atrasa também o pedido de ajuda e atendimento em serviços de saúde, e põe em risco a vida das vítimas. Dados do mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostraram que o Brasil somou, em 2022, 74.930 vítimas de estupro. 61,4% tinham no máximo 13 anos.
Presente no ato, a codeputada estadual da Bancada Feminista do PSOL, Simone Nascimento, classificou o PL um “retrocesso”. “A gente pode retroceder anos da legislação que garante o direito ao aborto legal para vítimas de estupro. Isso faz com que menos pessoas tenham coragem de denunciar essa violência e mais pessoas sejam torturadas, revitimizadas. Porque o estupro em si já é uma tortura. Gestar uma vida em decorrência do estupro é uma revitimização. Isso é o que está em risco”, alertou.
Atualmente, a legislação brasileira permite o aborto em três situações: gravidez resultante de violência sexual, anencefalia do feto e quando a gestação oferece risco à vida da gestante. Grupos feministas cobraram no ato a descriminalização do aborto e pediram dignidade e proteção à vida de mulheres e meninas em cartazes e faixas com os dizeres “Criança não é mãe” e “Não ao PL1904/24”.
“É absurdo. [Quem propõe o projeto] não deve ter filha”, afirmou a aposentada Rita Ronchetti, de 64 anos, lembrando que tanto meninas quanto meninos podem ser vítimas da violência sexual. “Esse PL é legalizar a violência contra a criança”, criticou.
Os manifestantes também entoaram gritos de protesto contra a bancada evangélica no Congresso e discursaram em jogral denunciando o projeto de lei. “A situação é muito grave porque a gente vive, como disse a ministra da Mulher, uma epidemia de gravidez infantil no Brasil”, lembrou a professora de artes da rede municipal e sindicalista, Lira Alli, de 35 anos.
O ato contra a PL da Gravidez Infantil percorreu a Av. Paulista, do Masp até a Praça do Ciclista, de forma pacífica e terminou por volta das 20h40. Veja mais fotos da manifestação.